Cesar Cielo acordou no sábado, 3 de agosto de 2013, sabendo que disputaria, em poucas horas, talvez a prova mais difícil da vida. Já tinha nadado final olímpica, até mesmo outras finais de Mundiais, como a que viria pela frente. Já tinha nadado os 50m livre ao lado de alguns dos principais atletas do mundo, alguns deles que estariam ali perfilados com ele em Barcelona, por sinal, novamente.
Mas o brasileiro sabia que seria diferente, e não é um jargãozinho besta, este, não. Sempre é especial quando todo mundo está vendo, quando todo mundo espera um grande resultado seu, quando todo mundo estará de olho em cada movimento executado na piscina.
Mas é mais especial ainda, e difícil, e complicado, e comprometedor, e sei-lá-qual-adjetivo-mais quando você mesmo está de olho nisso tudo. E Cielo estava numa dívida consigo mesmo quase impagável. Que, dependendo da sequência dos acontecimentos na carreira, caminharia ao lado dele a vida inteira, atormentando, pesando, incomodando.
O brasileiro nunca digeriu o bronze nos mesmos 50m livre na Olimpíada de Londres, em 2012. A medalha não ficou pendurada no pescoço dele, mas, sim, engasgada na garganta. O que pode chegar a ser um absurdo, uma calamidade, o sujeito praticamente se culpar por ter sido “apenas” o terceiro melhor do mundo nos Jogos. Mas era assim que era, e dá para dizer que Cielo, quando olhava para a medalha, talvez até tivesse vontade de jogá-la pela janela.
Tinha mais. Cesar vinha de uma sequência de notícias desfavoráveis, diga-se assim, desde o fim de 2012. O projeto pessoal no qual apostou demais, que buscava montar uma equipe de excelência de olho na Olimpíada do Rio, em 2016, naufragou. Por culpa dele? Dos demais nadadores? Dos técnicos? Da equipe técnica? Da ausência de apoio? Não importa. Naufragou, e é complicado quando um sujeito com as credenciais dele tem de lidar com esse sentimento, o de ter fracasso numa coisa na qual acreditava.
Depois, ficou sabendo que o Flamengo, então o clube que lhe pagava um salário, não teria mais uma equipe profissional de natação. Em sequência, a notícia de que teria de operar os dois joelhos, porque uma tendinoplastia impedia que executasse um dos movimentos mais básicos de um ser humano, o de pular. E qual nadador pode sonhar com alguma coisa se não pode partir de uma baliza, não pode saltar na água e bater pernas com a eficiência que acha que tem de bater?
Foi então que 2013 começou, sob uma recuperação médica, cheio de incertezas. A única certeza, na verdade, era a de que, em julho e agosto, teria uma competição importante para disputar, um Mundial, no qual defenderia dois títulos, o dos 50m livre e dos 50m borboleta. E se você chega lá e não vence, meu caro, ninguém quer saber do porquê, simplesmente esteja preparado para a porrada, porque ela vem, e com força.
Por isso, o ouro nos 50m borboleta já havia sido uma benção para ele. O melhor anestésico que poderia ter, até aquele momento, porque, de certa forma, espantou um pouco a dor, fez com que aquela nuvem negra fosse embora. O que era de negativo tinha, enfim, um contraponto positivo para que tudo fosse colocado à mesa.
Já dava para voltar para casa e encarar as pessoas de frente, esperar pelos abraços e tapas no ombro. Se era para vencer na Espanha, vencido ele havia, oras.
Mas tinha mais, e quando Cielo acordou, em 3 de agosto, sabia disso.
Os momentos anteriores à final dos 50m livre trouxeram tudo isso de volta na cabeça do velocista. Ele se lembrou de Londres-2012, das críticas, do projeto que não deu certo, da dispensa do Flamengo, das cirurgias, da recuperação. Lembrou-se de que não era mais visto por todos como o cara mais rápido do mundo, que tinha gente melhor do que ele na raia, que talvez não estivesse mais em plenas condições físicas – e por que não dizer psicológicas, também? – de representar o Brasil como gostaria justamente no Brasil, em 2016.
Quando se deu conta, havia batido a mão, machucado o dedão direito na borda da piscina. Bastaram 21s32 para isso, e mais alguns poucos segundos para virar a cabeça, olhar no placar e explodir em felicidade, emoção, o que quer que seja. Cielo havia conquistado a medalha de ouro. Mais do que isso. Estava apto a conviver com ele mesmo depois disso.
Dá para entender, então, o porquê da comemoração mais efusiva que as pessoas já viram por parte dele. Mais do que o bronze em Pequim. Mais do que o ouro em Pequim. Mais do que os cinco ouros anteriores em Mundiais de piscina longa. Cesar, naquele momento, voltou a acreditar nele mesmo. É como se o sujeito não tivesse mais motivos para continuar praticando o esporte que o colocou no Olimpo, mas, de repente, recuperasse tudo isso. Mais, até. De repente, se sentisse “o cara mais foda do mundo”, nas palavras dele.
Tricampeão mundial dos 50m livre, recebeu a medalha das mãos de Alexander Popov. Ironicamente, ou não, um sujeito que ostentava pelo menos duas marcas que o brasileiro superou. O paulista é o único a vencer a prova mais rápida da natação três vezes em Mundiais. E somava seis medalhas de ouro, agora, uma a mais do que o russo. Um cara que vinha criticando Cielo desde o episódio do doping, no fim de 2011.
Cielo pode não ter reparado nesse detalhe, mas a medalha de bronze de Londres-2012 mudou de cor. Quando olhar para ela, Cesar não vai mais enxergar um pedaço de metal opaco, sem significado, que mais o afundou do que qualquer coisa. Quando olhar para ela, novamente, vai perceber um brilho diferente, vai enxergar nela um significado diferente. O significado que ela sempre teve, e nada melhor do que um banho de ouro, um certo ouro fundido em Barcelona, para colocar de novo as coisas no lugar em que elas merecem.
*Plínio Rocha é editor de esportes do Diário de S.Paulo e assina a coluna Na Raia na Best Swimming desde 2007
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